Um homem vai devagar

09/03/2012 11:58

  Um homem vai devagar*

             Um homem vai devagar, com o pensamento noutra civilização. Ao meio-dia branco de luz, observa sujeitos com um brilho esquisito nos olhos, povo feio, moreno, bruto. Os meninos seguem para a escola, vão deixando culpas no caminho. Sob o azul do céu de metileno, avistam-se pernas de morenas lavadeiras.

            Nem vivo, nem morto, o jovem segue escutando o canto dos homens trabalhando, trabalhando cada vez mais perto do céu, homens de cabeça rachada, que olham para o chão. O mundo parou de repente, os brutos ficaram calados. O moço se perde entre seus pensamentos: o marido está matando a mulher (tantos adultérios também!), a mulher ensanguentada grita.

            O sorveteiro corta a rua, cumprimenta o rapaz atrás do bigode – homem sério, simples e forte, quase não conversa, tem raros amigos. O caminho não é tão curto quanto parecia, coisas bestas acontecem, existem, como uma árvore banal, que ninguém vê; canta uma cigarra que ninguém ouve, um hino que ninguém aplaude. Sou eu e a cidade, pensa o poeta que acompanhamos.

            As casas espiam os homens, os homens não melhoram e matam-se como percevejos à sombra da paisagem de barro úmido. A cidadezinha está calada, entrevada (mas tantos assassinatos!), as árvores tão repetidas, casebres encardidos. O poeta está melancólico, fui brasileiro, moreno como vocês, admite.

            O perfume chama os olhos para contemplar as rosas, a terra não sofreu para dar estas flores. Tocam os sinos na igreja distante e o eco alcança de manso os ouvidos deste que hoje é moço e moreno, que  lembra do padre que fala do inferno sem nunca ter ido lá. É preciso ler um livro, levar a vida – a vida? A vida é um bruto romance, e nós vivemos folhetins sem saber. Carlos sabe.

            Um cachorro vai devagar, acha um queijo e come. Carlos tirou do bolso um cigarro que não quis acender. Há dias em que o escriba anda na rua de olhos baixos para que ninguém desconfie, ninguém perceba que passou a noite chorando. Carlos repara o gramado: é proibido pisar. Um burro, à luz do Sol, pasta – é proibido comer o gramado?

            O bonde passa, o gauche sobe. Está a dois passos da cidade importante, tirando ouro do nariz, achando que a vida é besta, que o povo quer passar-lhe a perna. O mundo é cada vez mais habitado, o modernista escreve, contudo mais vasto que o mundo é o seu coração.

            Carlos desce do bonde e, embora a chuva não estivesse caindo, fica triste de repente, como se ficasse ali, parado, enquanto o seu coração viaja molemente dentro de um táxi. Sou até muito triste, compara absorvido pela tristeza de ver a tarde cair como cai uma folha – os sapos estão danados!

            No banco amarelo da memória, o itabirano se contorce em exclamações:

            − Te abraço, beijo e casamos.

            E o pedido aceito – a moça linda, gorda e satisfeita.

            Ao chegar à sua casa, pulando a cerca da horta,  Carlos nota a mulher, no chão, calada e feliz.

            Na sala de jantar, sob os olhares da gravura, onde várias bocas se amontoam machucadas, a poética, no estado de dicionário, o espera. Drummond rabisca:

 


                                                        “No meio do caminho tinha uma pedra

                                                          tinha uma pedra no meio do caminho

                                                          tinha uma pedra

                                                           no meio do caminho tinha uma pedra.”

 

            Depois, percebendo que a poesia daquele momento inundara sua vida inteira, amassa a folha e lança-a ao lixo. O poeta tranca-se no seu quarto.

            Satisfeita, dona Dolores retira do lixo o poema, lê o manuscrito e conclui:

            −Carlos está cada vez mais poeta. Nunca me esquecerei deste acontecimento na vida de minhas retinas tão fadigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra...

            Drummond observava, comendo banana, a gravura na sala.

 

 

 

* Crônica produzida a partir de trechos de poemas do livro Alguma poesia e A rosa do povo


Maxsuel M. Lênihon