Um homem bate à porta

01/08/2012 16:56

 

               Um homem bate à porta, é atendido, entrega o documento de identidade, pede alguns trocados, agradece, sai. A porta é fechada para o mundo. O patriarca da família, que sustenta desde seus verdes anos um pomposo bigode, está a roncar, sua esposa, cansada de tanta submissão, o imita. Ruídos delatam a presença de agitados pombos e galinhas na vizinhança. Há um riso constante, vindo de muito próximo; as crianças, sob a influência do ridículo instante, esboçam um inocente sorriso. Moscas tentam sair da casa, alvoroçadas, quiçá atraídas por um detestável cheiro de fritura, comum nas redondezas. Dolores dorme, sentada na sua cadeira de balanço, na varanda dos fundos, entretida com suas galinhas pretas.

            A monótona garoa se apresenta, menos que fina. Os pombos continuam ensaiando seus cantos. Súbito ouve-se o que parece ser um tiro, distante e inofensivo – aparentemente. Aquela pomba cinza, com meia dúzia de penas brancas, há muito estática no alto de uma antena, cai em respeito à força da gravidade, morre em consideração às banalidades da vida. Depois, silêncio. O relógio, dependurado sobre a janela do compartimento principal, prende a atenção dos pequenos, distinguem-se o passar dos segundos. O guardião do tempo informa um horário incompreensível às feições infantis, que o encaram num misto de temor, curiosidade e surpresa.

            Agasalhos escondem os raquíticos corpos dos transeuntes. Há o que apressa os passos, intercepta uma senhora de meia idade, se apodera de seus pertences e avança rumo a um beco de remorsos. A chuva cai com maior intensidade, desliza sobre o desfile de guarda-chuvas. Ajudem-me, implora uma idosa de olhos miúdos e cabelos tingidos. Está caída nas proximidades. Após ser acudida, revela, exibindo sua dentadura horrendamente amarela, ter quebrado uma unha. A idosa não agradece o mendigo que a auxiliou, e segue seu caminho deixando no gasto asfalto um documento de identidade já consumido pelos anos. A ingrata é Dolores Aparecida e Silva, nascida em 15 de agosto de 1940, assevera o documento, que ainda revela: trata-se de uma analfabeta.

            Um homem bate à porta, é atendido, entrega o documento de identidade, pede alguns trocados, agradece, sai. A porta é fechada para o mundo. O patriarca da família, que sustenta desde seus verdes anos um pomposo bigode, está a roncar, sua esposa, cansada de tanta submissão, o imita. Ruídos delatam a presença de agitados pombos e galinhas na vizinhança. Há um riso constante, vindo de muito próximo; as crianças, sob a influência do ridículo instante, esboçam um inocente sorriso. Moscas tentam sair da casa, alvoroçadas, quiçá atraídas por um detestável cheiro de fritura, comum nas redondezas. Dolores dorme, sentada na sua cadeira de balanço, na varanda dos fundos, entretida com suas galinhas pretas.

 

Heitor Bális Lênihon