Tudo tão no lugar

08/08/2012 15:46

TUDO TÃO NO LUGAR

O Mendigo - Marcelo Malheiros Teixeira (retrato, realismo, óleo, cor cinza mt escuro, cor preto)

O Mendigo (2011) - Marcelo Malheiro Teixeira

 

 

 

A tarde se esvaziava, sem êxtase, sem dor, sem pressa. Os carros enfeitavam as ruas irregulares. Havia defronte à praça um ponto de táxi, alguns velhos descansavam à sombra de uma árvore imensa, um tanto lúgubre, eram os taxistas. Um senhor maltrapilho andava estranhamente em marcha ré, parecia alcoolizado, parecia louco, parecia um homem. Os transeuntes não lhe davam atenção. No que pensava? Inútil supor. Avançava e recuava como se estivesse preso a um pensamento fixo, como se estivesse hipnotizado.

O vento soprava mais forte. A sujeira avançava, algumas sacolas plásticas surgiram no céu, os pássaros buscavam recuperar o espaço perdido. No posto de gasolina, à direita, brutamontes riam, torciam o pescoço ao avistarem o mais desinteressante corpo. Alguns indivíduos passavam a correr, suados, pensativos, insatisfeitos. As garotas, atrevidas feito a aurora, exibiam seus sorrisos apaixonados; umas caminhavam com o olhar fixo na tela do celular.

E eu ali, sentado sobre um velho exemplar de Os Miseráveis – o livro substituía uma página qualquer, arrancada aleatoriamente para limpar a poeira presente nos bancos da vida. Aguardava tranquilamente o ônibus, a percorrer mentalmente os 133 quilômetros que me separavam da faculdade.

Os acadêmicos se agrupavam, dialogavam. Alguns veículos estacionavam, outros arrancavam após uma troca de monólogos entre motoristas e universitários. A paciência se esgotava aos poucos, o atraso, apesar de habitual, desanimava. Tudo tão no lugar, tão brando, a calma abraçava os últimos raios solares.

Distraia-me com os detalhes do hoje, meu olhar repetido, reidentificando o que desconheço. Os minutos passavam sem que eu percebesse. Observava para não mergulhar num nada que guardo comigo. Não olhava nos olhos de ninguém, simples medida para evitar o confronto de duas almas. Não reparei naquele sujeito que se aproximava com modos incomuns.

Dois meses antes eu o tinha visto num outro espaço e com trajes menos paupérrimos. Fui atendido por ele na biblioteca municipal. Eis como estava naquela ocasião: vestia uma camisa verde, comum, bem passada, a calça jeans era de um azul vibrante. Os cabelos brancos e rasos completavam aquela figura de olhar fundo e contornos humildes. Devolvi o exemplar que tinha em mãos e fui em busca de outro, ele disse qualquer coisa quando lhe entreguei o livro para que fosse registrado em meu nome. Muito bom esse livro, comentou. Já o leu? Indaguei. Não, não, mas já li outro do mesmo autor, respondeu um tanto sem graça. Naquela oportunidade, notei um não sei o quê que muito me intrigou. O atendente parecia ser alguém de colossal inteligência, no entanto, perdido entre seus nortes. Recordei-me de um comentário muito repetido por meus colegas ao me verem empolgados com alguma leitura: “Esse aí vai acabar louco!” E eu me contendo para não vociferar: “Louco sim, ignorante, não”.

Ele se aproximava com o olhar no asfalto. Cabeça mais que baixa. Calçava um tênis horrendo, que trazia a lembrança de um branco; estava com a mesma camisa verde de outrora, porém sem passar, a calça, cheia de cortes, dava a ele uma aparência indócil. Usava ainda um casaco bege, com algumas costuras explicitas nos cotovelos. Após um tropeço, ficou estático na minha frente, a admirar a árvore que há pouco havia me embaraçado.

Ele dizia para si:

− Como pode isso? Árvores e mais árvores, esse é um país de árvores. Não, nada disso. Esse é um país de vazios, de muitos vazios – e, ao sentir minha presença, se voltou na minha direção.

− E uma boa parte desses vazios estão na cabeça dos brasileiros! Olá jovem. Jovem, jovem... Que coisa estúpida é ser jovem... Eu já o fui. Eu sou. Mas que besteira é a juventude, não achas?

O questionamento me assustou. Balbuciei:

− Sim. Claro. Óbvio.

O senhor continuou:

− A vida, menino, é o infinito entre aspas. Foi você quem disse isso.

Assustei-me ainda mais. Eu realmente havia escrito a frase, não me recordo quando, tampouco se a publiquei em algum lugar.

Um tanto empolgado com seu publico, comigo, o “jovem” continuou:

− Deixaste na biblioteca alguns poemas... Mas isso é asneira. Que digo? Nadas. Tudo. Enfim. Ouça: estude, estude. Vai engolir o mundo – essa é uma frase de um dos personagens do Victor Hugo, do clássico sobre o qual eu me sentara.

Uma dúzia de acadêmicos, pelo menos, se aproximou para ouvir o discurso. O orador, excitadíssimo, prosseguiu:

− Rapaz, é preciso renovação. Renovação, meu Deus! Vamos renovar, vamos? És capaz? Vamos. Vamos. Vamos. Que achas? Você não quer ser prefeito? Vamos. Eu fico como vice.

Ouvi alguns sorrisos atrás de mim. O ônibus se aproximava, o mendigo saiu do asfalto, subiu na calçada. Levantei-me e peguei Os Miseráveis. Ele me apresentou sua alma, isto é, nossos olhares se cruzaram. Subi no ônibus.

Fui logo me ajeitando numa das poltronas, abri a janela e...

O mendigo havia desaparecido.

 

 

 

Heitor Bállis Lênihon

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