Todos os cachorros foram mortos

12/01/2012 09:35

                Todos os cachorros foram mortos

  

              As idades iam de cinco a oito anos. Éramos quatro crianças com a cara suja a comer areia e arrastar a bunda pelo meio do mato. Levantávamos, os quatro mais a família, cedo e tomávamos um cafezinho preto e amargo; depois, barriga cheia, pé na areia, dizia-nos nossa avó.

                No nosso esfregar de bunda que varava o dia duma ponta a outra, demos pela gravidez da Polaca, cadela pulguenta, vira-lata, que fazíamos questão de ter. Semanas haviam passado sem que víssemos a cachorra; o sumiço passara a ter motivo evidente: se embrenhara no campo para lá cuidar, quando desse à luz, dos seus filhotes. Mas voltara, talvez por não suportar tamanha fome. Demos comida à pulguenta e logo, todos de mãos dadas, sabe-se lá por qual motivo, fomos avisar a família: “Polaca voltou”, dissemos em coro.

                Semana e meia passada, avistamos Polaca já magrela e pouco mais brava que de costume. Procurar seus filhotes fora a missão do dia. A tarefa não foi nada fácil. Já ia a noite engolindo o dia quando avistei à beira do barranco, mais precisamente à sete metros do córrego cujas águas abriam caminho ao fundo do quintal de casa, sete filhotes, todos com os olhos fechados e pêlos escuros –característica herdada certamente do pai. Ao lado deles, um cachorro malhado, na certa, resultado de sucessivos cruzamentos entre diferentes linhagens de cães vira-latas.

                Mal dei pelo achado, comecei a gritar e balançar freneticamente os braços para que todos me vissem. Estávamos, os quatro, admirando a matilha quando Tonico, primo mais velho, oito anos, deu a ideia que, àquela altura, pareceu-nos magnífica já que os pequenos não cheiravam bem.

                − E se déssemos banho de rio nos cachorrinhos?

                “Maneiro”, “Legal” e “Boa ideia!” foram os votos que decidiram pelo futuro dos cãezinhos.

                Já todos pelados, inclusive eu, com as vergonhas à mostra, começamos a banhar os animais. Os pais da matilha vigiavam-nos.

                 A farra instalara-se. Passada meia hora de banho, ninguém mais lembrava que os cães existiam. Uns foram parar no mato que circundava o rio; outros desapareceram misteriosamente. A noite já ia alta. E, não demorou muito, mamãe e titia nos chamaram para, pleonasmo rotineiro, “entrar pra dentro”.

                Entramos, tomamos outro banho, comemos e dormimos. Os cachorros nem povoavam mais nossas frágeis memórias.

                Na manhã seguinte, à hora normal, fomos acordados; mas houve gritos. Supúnhamos que fosse cobra – titia sempre berrava quando via uma. Longe disso; não era cobra. Eram os filhotes. Titia trazia três corpos molhados e sem vida, logo atrás, vinha mamãe com o resto, ambas eram escoltadas pela cadela Polaca.

                Aconteceu o provável: apanhamos até não querer mais.

                Desde então, além das minhocas e insetos vários, cachorros entraram pra minha lista de crimes contra a Natureza. Que burrice a nossa, falávamos uns aos outros, depois da surra. eu, embora com seis anos, não deixava lágrima cair, porque homem, naquela época, não chorava; só teimava em dizer: “Mas eu não matei os cachorros; eles morreram afogafos”.