Porcos Selvagens (Aguardem...)

16/04/2012 11:26

PORCOS SELVAGENS

 

Cena 1

 

As mulheres lavam, esfregam, torcem, batem, rebatem as roupas. A tábua sobre a qual labutam é breve e lisa, um antiguidade ainda primordial no campo, na paisagem obscura e pungente, próximo à mata fechada. Os maridos estão trabalhando; trabalham muito, conversam muito, exclamam vários palavrões e cospem na areia vermelha, querem chegar logo em casa, se possível, antes do crepúsculo, é dia de caçada! As crianças estão na escola, o ônibus escolar chega tão logo a noite cai, o seu motor alerta as mulheres: a janta dever ser preparada.

 

Cena 2

 

As crianças estão se divertindo dentro do ônibus. As agressões verbais são mútuas, é quase uma regra, viado é aquele que respeita a norma culta da língua, diz o mais culto dos ignorantes. Um fala mal da mãe do outro, alguns pais são tachados de corno, outros são acusados de fazer uso de remédios contra a impotência, é claro que os termos são outros, menos saudáveis. Os moleques são pequenos, não têm mais que doze anos. No entanto, fazem barulho equivalente a uma colheitadeira em pleno serviço. O ônibus para, é a última fazenda da linha, os garotos descem, alguns cansados, com sono, bocejando; outros animados, loucos para sacanear os colegas, mortos de fome. As mães ficam estressadas, os delinqüentes chegaram.

 

Cena 3

 

O velho prepara a sua refeição, reside numa casa escura, logo lúgubre, quase na ausência da luz. É um idoso muito introspectivo, porém trata-se de um peremptório caçador. As crianças agridem-no com acusações infundadas, distribuem pelas redondezas algumas proezas negativas do velho: foi um estuprador há anos, é um lobisomem, matou as filhas e cozinhou-as, guarda corpos humanos no freezer. Mas o velho aparentemente não dá a mínima para os comentários caluniosos, muito pelo contrário. A criatura tem um semblante calmo, a serenidade no olhar, mãos calejadas e brancas, parece ser o mais culto habitante da região. Hoje à noite, o senhor, esperto e forte, ensinará os marmanjos peões como encurralar um porco selvagem.

 

Cena 4

 

Os homens jantam junto às suas mulheres e filhos. Os filhos contam piadas acerca da escola, peripécias em sala de aula, abusos absurdos. Os cachorros latem a certa distância, aguardam as sobras. Não haverá sobras. Os cães devem ir à caça famintos, ensinou o ancião. Os homens limpam suas sujeiras na toalha da mesa, na toalha de rosto deixam as gotas de seus suores. Os cães acabam sendo deixados, olhares famintos.

 

Cena 5

 

As mulheres recebem um beijo, os filhos um safanão. As armas são carregadas pelo calouro da turma, garoto baixo, cabeça raspada, dentes brancos, aparência felina. Os humanos rudes partem para a aventura. O velho vai à frente, escoltado pelos inexperientes. Formam todos uma plausível fila indiana. São sete jovens, entre vinte e trinta anos, mais o calouro e o velho. As mulheres choram e desejam boa sorte aos seus cônjuges, os meninos estão fartos de porcos selvagens: de novo!

 

Cena 6

 

É a quarta ou quinta vez que o velho assume a liderança da caçada. A coisa que o calouro mais gosta são as histórias que o ancião narra, são narrativas densas, casos de arrepiar, tudo bem explicado e com doses de suspense, o moleque adora. A última aventura contada pelo sereno idoso foi a de um moço asiático, parece. O cenário não metia medo, a princípio, porém, à medida que o enredo ia se desenrolando o conto ficava tenebroso. No meio, havia várias mortes, o asiático matava os indígenas brasileiros com crueldade: arrancava mãos, pés, orelhas e depois as fritava. Assim eram as suas histórias: sempre uma morte inclusa, um suspense ocasional; enredo aparentemente frágil, uma qualidade que permitia ao narrador desenvolver o caso calmamente, como era de seu costume.

 

Cena 7

 

As casas já não podiam ser avistadas, todos caminharam a passos largos. A mata cada vez mais envolvia os fracos caçadores. Próximo a uma clareira, podia ver-se a lua alta, claríssima, inspiradora. Instalaram-se em redor de alguns tocos arranjados e postos ali, juntos, numa outra oportunidade. O calouro pediu, com certa timidez, para o velho contar um “causo”. O restante do pessoal incentivou o ancião. Após escutar alguns elogios acerca de histórias anteriormente contadas, algumas bastante folclóricas, admitiu, o senhor pediu que todos se calassem. O silêncio entrelaçou-se aos uivos dos lobos.

 

Cena 8

 

O velho, convencido de que não chegaria ao fim da história, mas para não contrariar a vontade unânime, iniciou o conto. A voz rouca, serena, pausada.

“Foi por aqui mesmo, meu guri, que aconteceu o caso. Diz que a mulher correu pra cá porque o marido queria matá-la. O casal, conta-se, discutiu muito na semana que antecedeu o ataque. Todos conheciam a valentia e também a covardia do marido. Um homem troncudo, cabelo pegando na nuca, testa com um corte deste tamanho (e dizendo isso o velho pegou um graveto com largura equivalente a um palito de fósforo, apenas a título de comparação). E muito chegado numa pinguela, era o seu café, digeria alguns copos do veneno (assim definiu ele) logo pela madrugada, o mulato.

“A mulher corria num desespero que só vendo para acreditar, tinha no semblante uma inocência que inspirava compaixão, coitadinha. Enquanto ela corria, aos trancos e barrancos, mais que qualquer diabo, com o filho novinho, mal completara um ano, o homem bebia mais um pouquinho de pinga pra poder pegar a moça – a garrafa caiu sobre as pedras molhadas, acabara de chover, e quebrou, o filho da mãe lamentou o liquido perdido, amaldiçoou a mulher: tudo por causa dessa bosta de esposa. A moça corria, corria mesmo, não houve quem pudesse explicar como uma mulher daquela, fina que nem palito, desengonçada, conseguiu correr daquela maneira.

“ O marido pegou um facão para capturar a mulher, avançava concomitantemente pela mata, todo trôpego – pegou o facão e se embrenhou no mato atrás de sua rapariga, assim que meu avô, o saudoso Teodoro, gente fina, trabalhou do primeiro ao último dia de vida, assim que meu avô descreveu-me esta cena.

“A moça caia e levantava, o suor corria pela face, ela limpava com a manta da criança, o suor, olhava para trás e via o facão vapt-vupt (e fez o movimento do instrumento resvalando entre o verde do mato) nas armadilhas da folhagem. Foi uma perseguição boa, digna de aplauso (os homens estranharam essa consideração, quase aplaudiram, ou vaiaram, o velho, contudo nada fizeram), de dar inveja a toureiro, eu diria. Quando um alargava os passos, o outro fazia o mesmo. Não daria pra apostar, assim, ao certo, quem sairia vencedor naquela disputa. Ficou empatado por alguns instantes, um pega-não-pega que poderia excitar qualquer telespectador (os homens não entenderam o que aquilo de "excitar o telespectador” tinha com o caso, mas fizeram cara de espanto, quem ficou surpreendido foi o velho. O calouro aproximou-se mais, ajeitou as mãos sobre os joelhos, tomou um gole d’água, olhos vidrados no emissor).

“A vitória tinha berço incerto, porque ora a vantagem era do bêbado ora da mulher com o filho no colo. Os dois já estavam cansados, prestes a desistir da emotiva empreitada. Havia uma lua bonita, que nem essa que nos espia, naquela data. Barulho é que não existia, só o respirar e o pisar de ambos – o bebê não chorava, respirava pouco, creio eu- desfazia o silêncio. Parecia que toda a mata assistia ao espetáculo extraordinário. A água começou a cair, incerta, arredia, depois brava, atraente, confusa nos dois momentos."

O velho fez uma pausa, pediu água para lubrificar a garganta, termo por ele empregado. Essa parada era pré-estabelecida. O calouro sabia bem quando ele empregava esse artifício, sempre se decepcionava nesse momento, queria saber logo o fim da história. Mas no fundo admirava a capacidade com que o ancião ministrava os seus ensinamentos, a maneira como desenvolvia os seus contos. O momento gerava uma expectativa maior, os ouvintes a seguir ficavam mais atenciosos, nem piscavam, mal respiravam, grande era a ânsia por conhecer o final da corrida, o que aconteceria com o bêbado, com a mulher, com o bebê. Não, eles não se importavam com o futuro do bebê. Só o calouro sabia que o bebê seria o responsável pelo brilhantismo narrativo do velho. Só ele sabia. O velho recomeçou, tossiu primeiro, recomeçou:

“E foi a melhor caçada que já houve por essas bandas. Se o bêbado pegasse a mulher seria honra maior que matar onça. Mas continuando (fez uma pausa um pouco longa que desagradou os ouvintes, olhou em volta). O homem parou de repente, a mulher ficou estática também. Bateu uma tontura no homem, que ficou rodopiando próximo a uma clareira feito essa aqui (e esticou o braço como se fosse abraçar aquele espaço). A mulher de certo acreditou na desistência do seu malfeitor, é um defeito comum às presas.

“Ela mais o bebê ficaram girando, girando, girando que nem mostra naqueles filmes da televisão, sabe como é? Então. E foi ai que pôde perceber-se os gritos da selva, estes impunham medo, e medo grande. A mulher esperou que a respiração retrocedesse até voltar à normalidade, verificou que o sangue escorria límpido e vivo por seus braços e pés. Sentiu que haviam espinhos introduzidos na sua mão esquerda – foi com essa mão que a menina se livrou dos obstáculos do percurso. A mulher respirou fundo, aliviada, olhou para o filhote que tinha e deu um grito que a mata não ousou sufocar”

 

Cena 9

 

Um ruído interrompeu o narrador. Um vapt-vupt entre as folhagens da mata. Aproximando-se, aproximando-se, um porco. Um porco selvagem. E vinha sem medo, aquele estreito animal, pesado, mais de cem quilos, quase um metro e meio de comprimento, o garrote impunha respeito. O velho gritou “deixa” quando o calouro abraçou a arma e se pôs a frente do selvagem. O garoto correu e se esquivou. O porco passou deixando como vestígio os galhos retorcidos.

 

Cena 10

 

O calouro não gostou da ordem proferida pelo velho. Esquivou-se ainda mais. Os jovens inexperientes não ousaram pedir uma explicação sobre aquilo que acabaram de presenciar. O velho levantou-se de súbito, deu três tapinhas nas costas do calouro, que se assustou, estava disperso. Exprimiu uma ordem qualquer, todos o seguiram, sem ressalvas. A noite havia se condensado mais. A história perdia o meado. No fundo, bem lá, os homens não queriam mais partir, não queriam mais caçar, não queriam mais capturam um porco. Apenas desejavam verouvir aquele velho que impunha respeito concluir a sua narrativa, acabar, ou prolongar o suspense. Qual o motivo do grito? Perguntavam-se. O garoto das armas sugeriu que terminassem com a caçada ali mesmo, o dia não estava bom para a prática, iria chover. Ninguém deu ouvido aos argumentos do garoto. Prepararam a armadilha e se camuflaram em redor.

 

Cena 11

 

O porco vinha vagaroso, desatento. O velho adquiriu uma exaurida palidez. Os homens puseram as mãos em atrito. O garoto das armas sorriu, despretensiosamente. O porco cada vez mais próximo, cada vez mais lento, cada vez menos vivo. Ouve-se um estrondo, um tiro, quiçá. Um tiro, certo. A presa não se esforçou, e pouco podia; rendeu-se sem gritos, teria sido tática de defesa? Os homens pularam em cima do bicho. A morte foi confirmada pelo grito seco e rouco do ancião. Houve comemorações. Três tiros disparados, o velho não aprovou o ato exibicionista.

 

Cena 12

 

De volta à clareira, sentaram-se para apreciar o sabor de uma vitória fácil. A história, o conto, ficara em segundo plano. Os homens bebiam, o garoto trouxera consigo duas garrafas de etílico. O velho divertia-se, mas não demonstrava emoção. Estava satisfeito em ensinar aqueles trogloditas alguma coisa aproveitável.

 

Cena 13

 

 

Findo o assunto que os interligava, o calouro voltou-se para o velho, pedindo, o seu semblante implorava, que este continuasse o “causo”. A recusa feita. A insistência. A concordância. O ancião bocejou, esticou-se, depois tossiu. Os homens se encurvaram. Os ouvidos alertas, os olhos bem acesos miravam a pestana lisa do velho, o senhor estranhamente cabeludo, cabelos brancos para não fugir à regra que a idade impunha. O senhor reiniciou a história de um ponto anterior à interrupção. Reiterou os giros da moça, o instante em que pôde perceber-se o ruído da selva. O sangue moldando a mulher. A mão esquerda. O respirar fundo. E, por fim, o grito. Mas o grito mereceu nova versão.

 

Cena 14

 

“Foi um grito misto, um misto de admiração e susto. Uma descrença provocou a exclamação. A moça via e não via, confusa demais. A atenção dela voltou-se apenas para o seu filhote. Ele era o centro das atenções, só ele era digno de seu olhar.O que ela observou causou tamanho estrondo, tamanho desabafo, tamanha ânsia de vômito. Sim, porque o grito é uma ânsia de vômito. O seu filhote era tudo, era a sua motivação, por ele ela continuaria correndo quilômetros e mais quilômetros. Se ela não tivesse inconscientemente voltado os seus olhos para aquele minúsculo ser, sem dúvida, teria corrido um par de metros. Mas o grito deixou o ambiente estático. O homem sumira. O filhote...”

 

Cena 15

 

Expectativa elevada. A vontade de partir para cima do velho e arrancar dele todo o conto. Fora mais ou menos essa a atitude imaginada por todos. Não passaram de desinteressadas teorias. O velho fazia pausas rítmicas, conferia a paisagem constantemente, encarava alguns moços, certificava-se de que estava sendo ouvido. Espantou-se com tamanha atenção. Abriu um livro em sua mente cansada, talvez, respirou, inspirou, prolongou-se nessas simplicidades.

 

 

 

 

(A história continua, fiquem atentos, são pelo menos mais cinco cenas, este conto é a reformulação da Parte I de “Porcos Selvagens”)

 

Assinado por: HEITOR BÁLLIS LÊNIHON