O ladrão adormecido

18/10/2011 10:44

 

O Ladrão Adormecido
 
 
            A missa era as oito, mas ele havia de ter chegado oito horas antes, faltavam dez minutos para a meia noite, a luz do Sol demoraria para chegar, a porta da Igreja estava bem protegida, mas o indivíduo não se intimidou diante a força da fechadura, estava decidido a roubar as hóstias, pelo menos uma dúzia delas, imaginando talvez que faria um bom negócio colocando um pecado em seu extenso currículo e tirando outros onze.
            O pecador há tempos que vigiava a Igreja, fazia verdadeiras peregrinações, todos os domingos ia a missa, tinha gravado na memória centímetro por centímetro daquela casa de Deus. Sabia onde e com quem estava se metendo.
            Ao encontrar a fechadura trancada teve ele a magnífica idéia de estilhaçar um dos vidros da Catedral de São João de Deus, quanto ao barulho, era o de menos, haveria de quebrar a vidraça no momento das doze badaladas. Feito isso a primeira parte de seu plano estava cumprida, restava completar a missão.
            Já no interior da diocese, fez o sinal da cruz e se dirigiu ao altar, ajoelhou-se perante a imagem de Jesus pregado num pedaço de madeira e pediu perdão pelo crime que iria cometer. Chegando a sacristia se dirigiu ao local onde ficavam as hóstias, a fechadura mais uma vez deu-lhe uma rasteira.
            O compartimento destinado a preservar o pão ázimo tinha sido adquirido a menos de uma semana, tempo exato em que o ladrão dessa história havia deixado de rodear o lugar para cuidar dos detalhes do assalto. O Santíssimo mesmo novo não resistiu às investidas do rapaz e se rompeu revelando o segredo que guardava dentro de si. O assaltante vendo aquelas doze belezocas (eram doze, incríveis doze hóstias) ficou paralisado, seus olhos brilharam e sua boca encheu-se d’água.  
            Faltava a última parte do crime, a degustação da massa circular, uma a uma ele levou-as a boca, a cada hóstia consumida iam de trinta a quarenta e cinco minutos de orações e confissões dos mais variados pecados. Lá pelas cinco horas da manhã, quando consumia a oitava unidade do aperitivo o bandido adormeceu.
            Quando o Sol começava a disseminar seu brilho, ainda com um pouco de neblina, uma dessas mulheres que não saem da porta da igreja passava pela frente da paróquia, percebendo uma das vidraças em estilhaços foi verificar.
            Lançando seu olhar miúdo para dentro da Igreja Matriz viu o ladrão adormecido babando sobre as hóstias e curvado na primeira fila de bancos nada confortáveis, esta cena grotesca intrigou a sacerdotisa que, convencida de que aquilo se tratava dum ato criminoso, não ligou para a polícia, o posto policial ficava a menos de duzentos metros da paróquia, e foi para lá que ela se dirigiu.
            Explicando a cena que presenciara ao sargento de plantão este riu-se dela, mas mesmo contrariado, depois de muita insistência por parte da senhora, o oficial acompanhou a concidadã até a Matriz.
            As seis badaladas chamavam o povo da cidade para assistir a missa, os mais apressados já estavam prontos e a caminho para rezar o terço, normalmente iniciado dois terços de hora antes dos sermões iniciais do padre.
            Ao chegar a paróquia o sargento enfim pôde ter certeza de que a mulher dizia a verdade, pediu então que ela procurasse o padre que logo veio com um bolo de chaves na mão, a essa hora o dorminhoco devia estar nas nuvens, mas era por pouco tempo. O rangido da porta não ficou indiferente aos seus ouvidos nem a luz do Sol aos seus olhos que foram se abrindo vagarosamente. Ao lembrar-se do que fora fazer ali não havia outro jeito senão entregar-se, preso em fragrante foi encaminhado ao distrito policial. Deve ter percebido que o Bom Senhor não gostou muito da idéia de receber um pecado e perdoar outros onze.
            A notícia correu a cidade, na missa não se falava em outra coisa, o prejuízo foi pouco, embora o assunto tenha cruzado os limites do pequeno município, saindo até num jornal da capital onde a manchete estampava: “PRESO DORME NO LOCAL DO CRIME”.