Alguma coisa do vale poético
A VIDA
A vida é o infinito entre aspas.
RESPOSTA AOS PORQUÊS
Porque é inútil.
AQUELES VERSOS
Um dia farei versos que nada dizem;
que nada são; que não existem.
Farei versos que pregam o não.
TERRA
A terra lavada, e quem lavou,
lavrou, levou, livrou a terra?
Terra soterrada por terras.
Terra suada, cuspida, chupada.
Terra batida, ferida, manchada.
Terra podre, pobre, nobre.
Terra sobre terra, enterro.
Terra que sobrevive, sobrevida de viventes.
Terra rente ao ar seco,
terra seca, cercada de ilusões.
Terra morta, torta, machucada.
Terra que faz escorrer a poeira nos olhos,
terra passada e arrancada por armas e mãos feridas.
Terra acima, terra abaixo,
terra linda e em pedaços.
Terra alegre e triste.
Terra cega, faca afiada lhe assiste.
Terra sombra.
Terra gente.
Terra contornada, acabada,
terra sem nome com cem nomes.
Terra de chão batido e gente abatida.
BRASIL, MOSTRA TUA CARA
Se o Brasil mostrasse a cara, quem não riria?
JOÃO
Seis de agosto nasceu João:
não registrado, sem outro nome.
Sete de agosto morreu João:
já registrado sem outro nome.
E esse foi o único poema que fez
enquanto estava vivo.
NOME
Os vermes que se alimentarão do meu corpo
não saberão do meu nome.
Os parentes, ao visitarem seus mortos,
não saberão quem eu fui.
Os cachorros, ao defecarem no meu túmulo,
não saberão da minha vaidade.
As beatas, ao verem minha fotografia de morto,
não saberão minha idade.
Meu último poema: uma estrela e uma cruz.
E se nascer uma flor ao lado do meu túmulo,
peço que ninguém roube, pois esta será meu novo nome.
CHAMADO
Chamo um nome que gosto,
mas que não me responde.
Chamo por um nome comum,
mas que me é raro.
Chamo por um nome de santo,
mas que não trás santidade.
Chamo por um nome livre,
mas que não tem liberdade.
Chamo por um nome só,
mas são muitos os nomes.
Chamo por um nome que conheço,
mas nem os desconhecidos respondem.
Chamo por um nome significativo,
mas que se perde no espaço.
Chamo por um nome ao telefone,
mas não sou atendido.
Chamo por um nome,
por um nome que não me responde.
Chamo por um nome.
Que nome? Qual nome? Chamo, chamo.
Chamo por um nome,
mas não respondo: chamo, chamo, chamo.
PRESSÁGIO
Vi sete vacas gordas
com bezerros a comer.
Vi sete vacas mortas
com carne boa pra comer.
Vi sete homens vivos
matando sete vacas gordas
com carne boa pra comer.
HISTÓRIA PANTANEIRA
Homem que é homem é homem até morrer;
e João era homem até que se escondeu da polícia
num lago cheio de jacarés.
REALIDADE
Espírito Santo que desce como um fogo:
cuidado que na descida
-a vida-
apaga teu fogo.
RESSUSCITADOR
Ressuscita a mim que estou vivo.
ALGUMA COISA DO VALE POÉTICO
Procuro alguma coisa
que não me revele nada.
Procuro alguma coisa
para agradar minha alma.
Procuro por todo canto
coisa nenhuma,
coisa que não sei ainda o quê,
mas que procuro para existir.
Procuro alguma coisa louca,
algum sentir do mundo.
Procuro alguma coisa “coisificada”.
Procuro coisas casadas.
Procuro alguma coisa
na sala, na mala, na estrada.
Procuro alguma coisa minha.
Procuro alguma coisa de dentro pra fora.
Procuro alguma coisa,
alguma coisa do vale poético.
SER
Daqui vejo que um pedaço do ser
foi atirado; que um traço do ser
foi arrancado; que um passo do ser
foi amputado; que um caco do ser
foi juntado; que um lado do ser
foi maltratado; que um pranto do ser
foi inválido; que um sábado do ser
foi sacrificado; que um amado do ser
foi enterrado; que um amanhecer do ser
foi adiado; que um olhar do ser
foi desviado; que um tempo do ser
foi arrancado; que tudo que daqui vejo,
vejo em perfeito estado.
COISA
Uma coisa é a mesma coisa
depois que se vê outra coisa
ou uma coisa continua sendo a mesma coisa
mesmo que várias coisas meus olhos
venham a ver?
Que coisa boa é não saber de todas às coisas.
FELICIDADE
Felicidade é colocar as mãos no bolso e,
mesmo não encontrando nada,
esboçar um belo sorriso.
Felicidade é viver na rua
e mesmo assim cercado de amigos.
Felicidade é, mesmo não tendo nada, ter tudo.
Felicidade é o que não está à venda na mercearia da esquina.
Felicidade é a coisa mais doida e difícil que existe.
POETA EM MOVIMENTO
A poesia como que sai de um estado
de extrema indecisão e povoa as linhas tortas do meu eu.
A poesia faz-me parar e refletir, me faz rir.
A poesia é o que me move.
SOLDADINHO DE CHUMBO
Esquerda, direita, esquerda, direita...
Um, dois, três, quatro...
Pelotão: Sentido!
− Que coisa mais sem sentido.
LIÇÕES DE PEDRAS CEGAS
Vem pedra, cai pedra.
Vai, vai, vai, vai…
Cega essa pedra cega.
Vai. Sai dessa quebra,
quebra a pedra que te cega.
Vai pedra cega: cega essa pedra que te cega.
Cegue, quebre, pedra.
O que restou foi pedra.
LADO DO VALE
Há tempos que não faço um grande verso,
um verso que me sustente,
que me surpreenda de todo.
Há tempos que não faço versos
dos quais eu me arrependa por inteiro.
Há tempos não viajo entre os opostos
do meu vale poético.
VERSO SOBRE OS POETAS
Todos somos poetas:
Uns com a cortina fechada, outros com a cortina aberta.