Sangue e vida

02/05/2012 16:29

Sangue e vida

 

Após ser atingida pela bala que estilhaçara a janela, rastejou-se até a porta do apartamento. A princípio, o baque a incomodou, logo sentiu o projétil penetrando-a qual uma agulha cirúrgica. A vizinhança ouvira o disparo de modo que todo o edifício se reunira no térreo, unidos por uma esporádica apreensão. Deduziu o porteiro, homúnculo pesado e de escassos cabelos, ereto sob o boné azul: um tiroteio, alguma bala perdida, certamente. O hipotético anúncio agitou os transeuntes. A moça ponderou: há uma agência bancária aqui perto, a menos de três quarteirões, pode ser que... Pairava sobre todos um mistério. Nenhum grito, tampouco sirenes, ninguém exclamando o tradicional “Socorro!”.

À procura de indícios que pudessem levá-los à morada da possível vítima ou ao domicílio onde a bala se alojara, quatro senhores desocupados, liderados pelo já citado porteiro, iniciaram uma espécie de busca. O prédio ia sendo vasculhado. As crianças, incontáveis, se entusiasmaram com a caça enigmática e, por conta própria, também partiram para o interior do elevador almejando o encontro do projétil.

Sua dor aumentara ligeiramente. Rente à porta, as forças minguavam, estendida sobre o chão, fazia sucessivas tentativas no intuito de girar a chave e destrancar a fechadura. Não pôde vencer o obstáculo. As tentativas quedaram inúteis, para seu maior desespero. Sentiu, então, que suas pernas não mais obedeciam ao seu comando – fora condenada a ficar à entrada do lar, esgotada, aguardando vacilante resgate. O celular, no quarto, tocava constantemente.

Nenhum resquício no térreo. Seguia inabalável a algazarra dos pequenos. A bala não passara pelo primeiro andar. Luzes começavam a preencher o nada da noite. Famílias se incomodavam com a insistência do porteiro no sentido de averiguar seus lares. O tiro não teve como destino o segundo andar, concluiu-se. Restavam outros três.

Um carro prata, vidros escuros, estacionou defronte ao prédio, atiçando a curiosidade dos moradores.

Ela perdia sangue e vida. Transpirava e tremia, morreria assim? Erguera o olhar, o ventilador girando, girando insensivelmente. A pequena pomba, cinza, trôpega e inquieta, ingressou na sala, pôs-se a observá-la. Fez companhia à senhora que ali se encontrava, passeou livremente pelos cômodos, buscava alimentos, talvez. Com uma mecha de cabelos no bico, dirigiu à mulher um último olhar, leve adeus, e voou, voou sem remorsos. As inutilidades, suspirou a vítima.

Nos limites do apartamento, as lâmpadas permaneciam acesas. O vento, adentrando pela janela cujos vidros se reduziram a mínimos cacos, derrubava retratos, quebrando-os. O som continuava ligado, sintonizado numa estação qualquer. Melodias tristes completavam o instante. Vinte e uma horas com quatorze minutos, e o silêncio absorvia lágrimas.

O moço, esbelto, vestindo um impecável terno preto, saltou do carro, Em seguida, a moça mais a pequena e angelical menina, desceram.

Àquela altura, só dois, dos quatro senhores, acompanhavam o porteiro. Convenceram-no de que aquilo era apenas uma hipótese infundada. A bala bem poderia ter sido direcionada a outro edifício e... O porteiro, convencido, decidiu concluir a operação, no entanto, destacou que reiniciariam as buscas na aurora seguinte. Os homens seguiram fadigados para seus lares, ele se dirigiu à portaria.

Tudo calmo.

Tudo incerto.

O moço de terno com a mulher e a filha, subiu pelas escadas até o quarto andar. Apartamento 37. Bateram à porta. E nada. Tirou o celular do bolso e digitou os números. Ouvia do interior do apartamento o toque familiar. Ela está aí, concluiu.

Mãe e filha se entreolham. O porteiro surgiu, de súbito; o elevador o trouxera.

Minha mãe está aí dentro – o moço.

Houve um tiroteio agorinha – o porteiro.

Então... – ambos.

A porta foi arrombada. Encontraram-na pálida, respirando com dificuldades. Balbuciou qualquer coisa, desmaiou.

Pedidos de Socorro.

Exclamações confusas.

Tumulto.

As sirenes enfeitavam a noite.

 

Assinado por: Heitor Bállis Lênihon