Paternidade

27/01/2012 15:26

Paternidade

Distração

 

Saiu de casa às três da tarde. Caminhou sem rumo, com o pensamento do outro lado da rua, quase foi atropelado. Meia hora depois, viu-se à frente da biblioteca municipal. Entrou. O calor da rua confrontado com o ambiente arejado, no qual se enfiara, provocou-lhe arrepios. A seção de livros que lhe satisfazia o gosto ficava bem ao fundo da modesta casa de livros. Passou os olhos em alguns exemplares modernistas e deslocou da prateleira, ao lado dos intitulados “autores brasileiros”, A metamorfose, obra que influenciara todo século XX, publicada em 1915 pelo gênio alemão Franz Kafka. Folheou a obra, gostou.

Deixou a biblioteca com  A metamorfose entre os dedos. Sem ter mais meios de evitar o laboratório, acelerou os passos.

 

Ansiedade

 

Chegou ao laboratório e pediu o exame. Rapidamente foi atendido. Voltou para casa, seu coração acelerara. O irmão ainda não saíra, assistia à televisão. Ele não disse nada, enfiou-se no seu quarto. Abriria ou não o exame? Precisava saber se o homem cuja imagem estava imaculada no retrato atrás da porta de entrada era realmente o seu pai. Titubeou um instante. Abriu a janela para suportar o calor intenso. Suava muito, àquela hora.

Não abriu o exame, de imediato. Usou seu desfalecido imaginário para solidificar sonhos que habitavam sua infância. Pensou no que, caso o resultado fosse positivo, agora, aos vinte e um anos, poderia fazer com o pai: uma pesca, ir ao estádio assistir a uma partida de futebol, etc., etc.

Suspense

 

 

O envelope, que continha o resultado, estava lacrado, ele tentou abrir, mas não conseguiu. Uma tesoura, pensou. Procurou entre seus pertences algo pontiagudo com que pudesse cortar, rasgar, o envelope e desvendar logo o mistério. E se o resultado fosse negativo? Não pensara nisso até o momento em que finalmente tinha as quatro páginas, com o laudo final, nas mãos. A primeira página explicava o método pelo qual o exame fora concebido. A conclusão, que afirmaria, ou não, que fulano de tal era o pai dele, estava na terceira página.

 

A terceira página

 

No alto da página: conclusão: fulano de tal não é o pai biológico de...

 

Ele não conseguiu chorar nem esboçar qualquer outra atitude, sorriu, alguns segundos mais tarde, sem convicção. E agora? Perguntou-se. Se jogou na cama e começou a contar inutilmente as vigas do teto. Logo abriu A metamorfose e começou a lê-la com avidez. Duas horas depois, o irmão já havia saído, a mãe chegou.

 

Próximos dias

 

A mãe, após um longo abraço mais um beijo na testa:

-Eu já sabia.

- O quê, perguntou ele.

- Ele ligou pra mim.

- E...

-Disse que não esperava. Mas como você se sente?

- Bem. Não me sinto, talvez.

- E agora?

Ele lembrou-se, instintivamente, de um verso do Drummond: e agora, José?

- Não se mate e continuarei vivendo.

A mãe surpreendeu-se, abraçou-o chorando.

 

 

David Maxsuel Lima.