O dia estava azul

11/04/2012 21:41

O DIA ESTAVA AZUL

 

 

Corri muito até que cheguei ao local. Quando abri a porta, o mau cheiro me recebeu. Algo estranho está acontecendo, registrei. Notei que tudo no apartamento estava desorganizado, as cortinas, à janela, rasgadas. O sofá! Quase não o distingui, de tão acabado que ficara. Tive um pouco de medo, fugiria não fosse a curiosidade ter vencido meu desespero. Coisa de pressentimento, sabe? Só uma menina lesada, como eu, se enfiaria entre aquele punhado de escombros. Mas entrei. Girei observando tudo, depois fui à geladeira. A sede me incomodava. Não havia uma misera lata de cerveja lá dentro, nada de uísque! Bebi água, então. Que pobre não era o sujeito que ali se escondia, pensei com meus pouquíssimos botões. Nem te contei como fui parar ali, não é? Pois conto, claro. Um amigo me convidou para jantar, eu aceitei. Por volta das vinte horas ele me telefonou dizendo que eu podia esperá-lo defronte à sua residência. Ele me cedeu o endereço, entrei num táxi, baixei lá. O lugar não assustava, pelo contrário, era aconchegante. Bem arborizado, asfaltado, iluminado e outros “ados”. Subi e bati na porta de seu apartamento, o trezentos e dois.

 

***

 

Deixei a porta do refrigerador aberta, a luz do ambiente começou a diminuir vagarosamente. Percebi que alguns ratos habitavam o apartamento. Será que eu estava no endereço correto? Ou eu teria errado qualquer coisa, como de costume? A ideia me abandonou, de súbito. Apliquei minhas forças para revirar ainda mais os móveis. Fiz algumas observações inúteis: a escova de dente estava em cima da televisão; a sanduicheira estava sendo utilizada como depósito de cartas, jogavam baralho, de certo; um par de tênis escondia parte de um quadro, a imagem da imaculada alguma coisa aparentava desgaste; folhas de caderno quase que forravam o piso liso, amarelo, todas elas continham contas, fórmulas, nadas; a vassoura fora parar no ventilador de teto; uma mochila preta, seminova, interrompia a entrada do banheiro. O resto eu achei pouco anormal.

 

***

 

Não sei se errei de endereço. Alguém bateu na porta, me escondi na varanda. Chamaram pelo meu nome, muitas vozes. O que queriam? Não me lembro. Agarraram-me pelo braço e fizeram indagações, eu respondi apenas não, não, não, talvez, Maria, oi? Dos Santos! Solteira. E eles me prenderam. Na delegacia, todos me olhavam de revés. Parece que você cometeu um crime, disse o velho  que tinha um jeito de guarda. Nem liguei, fiquei observando o ponteiro do relógio, vinte e três mais quinze minutos. Mandaram-me para uma cela, bem limpa, nem parecia as que eu temia só de ver nos filmes americanos. Saí de lá após cumprir os três anos da pena. Fui direto ao apartamento. Bati no trezentos e dois, meu amigo atendeu. Chorei e aceitei o seu pedido de perdão. O dia estava azul, azul, e havia uísque no refrigerador.

 

Assinado por: Heitor Bállis Lênihon