O cão que baba

08/12/2011 16:31

          

 

 

O CÃO QUE BABA*

 

 

            Mas eu não tinha aonde ir. A noite estava lúgubre, tensão no ar, nuvens densas ameaçavam desabar a qualquer momento, furando, assim, o bloqueio imposto pelo gélido silêncio instalado. Nada de bom, nada de ruim. Nem latido nem coisa alguma. Todos se escondiam, estavam protegidos, pessoas e cães, em seus respectivos cativeiros. A noite não acabara. Eu precisava cometer um crime.

            Feito fantasma, fiquei vagando pelos becos; feri minhas narinas com um odor desagradável: esgoto a céu aberto. Não existia luz. De repente, ouvi barulhos, algo se aproximava, aguardei estático, só um gato. Prossegui. O celular vibrou no meu bolso, o peguei e desliguei-o; estava indisponível. Qualquer coisa no chão, curvei-me e agarrei-a; folhetim publicitário; fiz dele bolinha-de-papel e lancei dez metros adiante, depois chutei-o algumas vezes; esqueci rapidamente o que estava fazendo, interrompia sem perceber minha brincadeira infantil.

            À minha direita, percebi por trás da neblina – que diminuira muito meu campo de visão – resquícios de vacas magras – um bezerro gemeu. À minha esquerda, no meio do nada, casas com avantajados quintais, cerca de madeira, extrema escuridão. Onde estava a lua? Não existia lua ali. Ao fim, minhas vistas alcançaram uma moradia s/n, luzes estavam acesas. Era estranho, pois não havia movimento nem sinal de vida – inseto, grilos, ou coisas do tipo.

            Apressei meus passos. O criminoso era eu, não queria acabar vítima. Tudo se escondia sob as nuvens pretas: a vida, a morte. Tropecei, tinha uma pedra no meio do caminho, chega de poesia, pensei. Ventava forte, as poucas árvores ao meu redor perdiam suas folhas e galhos. Ia chover, tinha que ser rápido. Senti frio.

            Examinei-me – meu corpo, meus pertences. Minha cara estava gelada; nenhum documento que poderia me identificar – e isso era importante. Tirei as luvas das cuecas e coloquei-as nas mãos, claro.

            Já tarde, um vira-lata avançou sobre mim; chutei-o e ele sai ganindo. Ninguém tão próximo. É aqui que vai ser, balbuciei e minha voz foi levada pelas rajadas de vento; misturaram-se com a neblina, os sons. Tem que ser agora, fingi dizer.

            Bela árvore, admirei; me escondi atrás dela. A árvore parecia antiga,pelo que pude notar, tronco grosso, mas a copa era verdinha e cheia de flores – muitas flores no chão, distingui. Pena não ter nenhum fruto. Mas eu teria que comer, fiquei com água na boca; uma alma indefesa se aproximou.

            Não tenho certeza, na verdade, não faço à menor ideia de onde essa beleza saíra. Em pouco tempo, relâmpagos infestariam o céu, percebi, muito ruim, sei lá por quê. Estava na hora, eu deveria agir.

            Ela veio vindo; braços cruzados, bolsa de lado, debaixo do braço direito, cabelos negros e longos, belo contraste com a pele branca – que assustava, que excitava – e lisa. Estava de salto alto, devia ser burra, puta ou ingênua para andar com aquele modelo de sapato numa rua esburacada. Pisava de leve, desviando das pedras. Passou rente à árvore; saí do meu esconderijo; saltei interceptando-a. Ela se assustou, quando pensara em gritar, já tinha sobre os lábios minhas mãos (não dava para ver) negras.

            Parece que você estava me procurando, disse a ela, debochando; de vestido até facilita meu “trabalho”, raciocinei. Malu – é esse o nome que eu dava a todas as minhas vítimas – acalme-se, balbuciei ao seu ouvido. Dava para perceber seu desespero: ela começara a chorar. Dei-lhe um tabefe pra facilitar o exame de corpo de delito que, com certeza, seria feito na manhã seguinte ao estupro. Eu não levei cordas, esqueci, tive de forçar a barra para experimentá-la por completo – se é que você me entende.

            A vítima se rendeu, minha vítima; não tentava mais jogar pra longe o corpo – meu corpo. É assim que eu gosto, falei alto.

            Impressionante, Malu pareceu gostar daquilo, fantasiava um estupro, talvez; fiquei frustrado. Não me excitava. Distingui seu olhar, ele variava entre assustado e perverso. Mau pressentimento.

            Meti-lhe um tapa na cara e lhe arranquei um beijo bem molhado. Ela me mordera sem a intenção de ferir; mordera-me quase gozando. Fiquei, por instantes, sem reação. Ela quer então vai ter, conclui.

            Pressionei meu corpo contra o dela só pra mostrar quem é que mandava. Ela, meu Deus (!), sem que eu tivesse ordenado ou feito qualquer menção, arrebentou as alças do vestido, se livrou do sutiã. Não dispunha de tempo para admirar, mas admirei: lindos peitos, como se fossem maçãs verdes. Bicos saltitantes; apertei-os e lambi-os. Delícia. Ela me provocava. Levei um tapa no rosto, retribui com a mesma moeda.

            Continuei acariciando seus seios. Era ela, sem exagero, quem ditava o ritmo; empurrou minha cabeça pra baixo; cheiro de vagina: o cão que baba.

            “Agora é pra valer”, lati. Alguém devia aparecer –sugestão indecente – para que houvesse suspense, um pouco de medo para dar vida ou apimentar, realçar o sabor do crime. Só nós dois e o céu que ameaçava desabar.

            De súbito, meu tesão aumentou, minha raiva também; “vou acabar logo com essa merda”. Rasguei, feito um animal selvagem, todo o seu vestido, numa mãozada só. Restava a calcinha fio-dental  (a visão do inferno). No mais, estava nua. Apressei-me.

            Ela falou: enfia, e eu, por prazer, presenteei-a com mais um tabefe. Arranquei-lhe a calcinha, com delicadeza até; dei uma fungada e a abandono, a calcinha.

            Já era hora! Puxei-a ambicionando o encaixe perfeito; ela ajudou e apoiou os cotovelos no chão, ergueu um pouco as pernas. Confesso, me  assustei.

            Houve penetração. Ela gemeu, não gritou – incrível! Nunca transei assim, disse a ela. Malu dizia: “enfie caralho!” e haja tabefe! Puta que o pariu, disse ela quando apertei com força desproporcional seus belos seios. Mais tabefes. Àquela altura, gozei. Me recompus, acho, com certa lerdeza. Depois, eu não pensava, saí correndo. Olhei pra trás, ela continuava lá, vi um pequeno foco de luz saindo de... Meu celular! Não havia mais tempo, ela o pegara, eu estava ferrado, sem duvida. Será que ela gostou? Foi a pergunta que me veio a cabeça.

            Corri mais um pouco. Fora de perigo, suspirei aliviado. O céu começou a brilhar, a chuva caiu agressiva. Noite perfeita, suspense, fora maravilhoso, minha puta vítima. Branquinha, cabelos pretos, contraste.

            Naquela noite, não escolhi minha presa. Na noite seguinte eu teria uma loira nos braços, não tão puta; uma vítima descente como todas as outras –eu voltaria a ser só mais um estuprador, sem fantasias, de mulheres que, com o olhar transmitindo desespero, pareciam virgens desprotegidas.

           

           *Conto.