Índio na pista

03/01/2012 16:37

Índio na pista

 

 

Cena 1

 

            Não há movimento, nenhum carro transita pela Avenida. O dia segue sem problemas e o silêncio é o que mais incomoda. É sábado, são três da tarde, o Sol brilha ditando o ritmo. O céu está todo azul, não há nuvens. A cidade é mansa, corre vagarosa, avesso metropolitano. Três pessoas na rua, uma moça e dois rapazes; a moça está de salto alto, carrega uma sacola com logotipo, acaba de fazer compras e deve ter os pensamentos no jantar logo à noite; os rapazes conversam, riem muito, percebem a moça, os olhares procuram o de sempre: nádegas e seios.

 

Cena 2

 

            Aparece um índio. Ele dorme  no gramado do canteiro central. Seus trajes são horrendos, vestimentas rasgadas, ao seu lado, bebida alcoólica. Parece ter acordado, levanta-se vagarosamente, cai por cima da sua bicicleta, relíquia antiga, pintura fosca, vermelho desbotado. Esforça-se para manter-se ereto, apóia-se na bicicleta, consegue, enfim, se equilibrar. Vai deixar o canteiro, olha para cima, coloca as mãos no bolso, não encontra o que procura, certamente foi roubado. Mal abre os olhos, um carro se aproxima. Ele inicia a travessia. No meio da rua, o veículo atinge-o de leve.

 

 

Cena 3

 

            Era sua última entrega; a serviço de uma loja de móveis. Guia um saveiro, passa a trafegar pela Avenida, numa lentidão que impressiona. No meio da pista, o índio carrega – ou é carregado por- sua bicicleta. Ele o assusta, atingindo-o de leve. O índio sai cambaleando e acaba desabando a beira do meio-fio. Ele desvia, cospe pela janela, e segue viagem. O índio continua caído.

 

Cena 4

 

            Chega à sua casa, estaciona o saveiro na garagem. A mulher acabara de chegar do mercado, trazendo consigo os ingredientes para o preparo da sua já famosa lasanha. Ele agarra-a por trás, beija-a. Ela aceita as caricias, mas pede que ele se arrume logo, breve o jantar será servido; mas a tarde mal acabara. Seis horas.

 

Cena 5

 

            O pai telefona e pede para a família se arrumar: vão jantar na casa de amigos. A mulher e os três filhos tomam banho, rapidamente; estão prontos e a espera do homem da casa. Seis e meia, começa a escurecer, os grilos começam a cantar. O mais novo dos filhos, inquieto, pergunta a mãe a que horas o pai os levará. O pai joga baralho com os companheiros, o jogo acaba e ele lembra-se que tem que  buscar a mulher e os filhos.

 

Cena 6

 

            O índio, junto ao meio-fio, segue, carregando sua bicicleta, para a aldeia, onde reside. Para chegar ao seu destino, deve percorrer cerca de três quilômetros pela rodovia que corta o município. Na rodovia, diferente da cidade, o tráfego é intenso, caminhões e carretas se deslocam em altas velocidades; motoristas alcoolizados e cansados dirigem suas máquinas.

 

Cena 7

            O caminhoneiro está cansado; quase não dormiu nas últimas três noites. O calor é intenso, a luminosidade diminui, é a noite que chega. Os faróis estão acesos. O caminhoneiro tira a camisa, segue viagem. Muitos buracos na pista, desviar deles é uma tarefa difícil. Ao longe, a cidade se mostra timidamente. Mais uma parte do longo caminho fica para trás. Não se respeita a sinalização, os veículos passam dos noventa quilômetros por hora. A Lua já aparece, são seis e quarenta e cinco.

 

Cena 8

            A família entra no carro. O caminho mais rápido até a casa dos amigos corta a rodovia. Os filhos brincam ou brigam – não se sabe ao certo – no banco traseiro. Na frente, a mãe e o pai discutem qualquer assunto. O pai reduz a velocidade porque avista um índio  trezentos metros adiante. O índio cai e se levanta. Os carros param; índio na pista.

 

Cena 9

 

            O pai desce do carro para ajudar o índio. O carro fica no acostamento. O índio é arrastado até a extremidade da rodovia. Tudo certo, o pai volta para o veículo, gira a chave e o carro reage. As crianças perguntam o que aconteceu. O pai não diz nada; a mãe pede silêncio. O índio apóia-se na bicicleta e olha para trás. A noite já não se esconde. Passou das sete. A família não chegará a tempo.

 

Cena 10

            O casal espera os amigos com certa ansiedade. São sempre pontuais e já são quase oito horas. Algo de ruim deve ter acontecido, ambos pensam na possibilidade, mas nenhum dos dois põe ela em discussão. Os telefones dos convidados estão desligados, cai sempre na caixa postal. O desespero é visível no rosto dela; ele, como marido, tenta dissuadi-la de qualquer ideia malévola. Pouco tempo depois, são informados do acidente.

 

Cena 11

            O circulo se fecha. O caminhoneiro acelera, o índio segue cambaleando. O caminhão se aproxima, o índio cai na pista. O pai vê, a família grita; já não havia mais tempo. O índio tem a cabeça esmagada pelo caminhão. O cérebro como que salta para o meio da pista. O caminhoneiro tenta fugir, acelera mais. O pai também acelera, desvia daquilo que parece ser o cérebro do índio, e consegue impedir a fuga. É tudo muito rápido. As crianças já não estão no carro. O caminhoneiro está com as duas mãos na cabeça e grita, e chora: “O que foi que eu fiz?” A cena é indescritível. Mas vamos a ela.

 

Cena 12

            Pequeno congestionamento se forma. Um tumulto surge em volta do índio; outro grupo espia o cérebro no meio da pista. A polícia chega; a ambulância chega. A noite vai acabar. A imagem que fica é a de um índio com a cabeça esmagada, feito bola de borracha. Um dos filhos pergunta se o índio ainda vive.