Ele guarda uma vida

29/03/2012 14:03

 

Ele guarda uma vida

 

Chegou a sua casa pensando em suicídio. Abriu a porta, passou pela sala. Na cozinha, o armário, comeu uma dúzia de biscoitos recheados. A geladeira aberta, bebeu dois copos d’água, degustou meia fatia de presunto, passou as vistas nas maçãs: vermelhas, talvez suculentas. Cerveja na mesa, envolveu a garrafa entre os dedos e agarrou o abridor: pronto! Primeira dose, foi! Segunda dose, foi! Terceira dose, foi! Quarta doze, foi! Pôs a garrafa vazia sobre a pia enfeitada com louça suja.

Foi ao banheiro, fez o que fez, voltou à cozinha.

Descuidou-se, quebrou a garrafa, vidros escuros espalhados pelo piso branco. Cerrou as janelas, o vento úmido agora inexistente. Olhou para o teto, observou as teias de aranha, o lustre a cair, a luz incandescente. Baixou o olhar, verificou os cacos em redor dos pés, bocejou. Caminhou até o quarto. Chegou ao seu quarto pensando em suicídio.

Num gesto automático, tirou a gravata, jogou-a sobre o criado-mudo, se desfez do paletó colocando-o num cabide, dentro do guarda-roupa. A camisa ficou dependurada numa pequena estante ao lado da cama. A cama velha, o colchão com pequena depressão apontava para um sono com idade avançada. Livros espalhados por todo o ambiente, exemplares aparentemente novos, alguns recém-lançados, outros, best-sellers americanos. Sob o travesseiro, O Encontro Marcado, de Fernando Sabino.

Estendeu-se na cama, ajeita daqui e dali, encontrou uma posição confortável. O teto não forrado, um momento para contemplação. Os olhos agora vidrados fingem mirar a parede amarela, a vida talvez fosse aquele olhar para o ontem. A cama range. As sirenes, lá fora, enfeitam o silêncio. O silêncio, sobre o homem, completa o dia. A luz acaba, a noite perde sua mais desnecessária alegoria.

Na escuridão sem exclamações, ele acende uma vela. Procura uma luz fluorescente, algo para distrair a atenção. Distrair a atenção, por quê? Porque a vida só pode ser uma distração. Os ouvidos desatentos, a visão suprimida, ele está vivo, ele está calmo, ele está corrompendo o hoje. A luz volta, aos poucos, como um reencontro com a normalidade.

Ainda no quarto, sobre a velha cama. Os braços entrelaçados atrás da nuca. As mãos úmidas, o respirar intenso. A arma na gaveta, a morte ao lado. A vida talvez seja isso. A vida talvez seja. A vida, talvez. A vida.

Tudo quieto e disperso. A manhã ainda incompleta, a madrugada aberta, disposta a receber acontecimentos. A madrugada, esse banco da morte. É preciso existir em qualquer lugar, em qualquer lugar onde os cães possam latir. Os cães não latem, o chão está gelado e ele se levanta.

Os pés. Será que guarda uma dor, esse moreno? Ele guarda uma vida. Pega a arma vai  à janela, aperta o gatilho: um! dois! três! quatro! cinco! A arma caída do lado exterior da residência; as sirenes cada vez mais próximas; os latidos, finalmente! O corpo estendido entre a calçada e a rua, um velho se contorce todo, recebeu cinco tiros e não irá resistir aos ferimentos.

O homem, apenas dois olhos espiando a aurora, sai da janela, vai ao banheiro, retorna ao quarto.

Está de terno, às seis da manhã. Tranca a porta e sai caminhando com um título sob os braços, a maleta marrom e antiga completa o seu figurino. Ele para rente a calçada, olhos fixo sob o sol, uma poça de sangue. Se curva, com o dedo indicador, toca no líquido, dá um sorriso e segue caminhando. No trabalho, continua pensando em suicídio.

 

 

Assinado por:  HEITOR BÁLLIS LÊNIHON